Isentinho arregala os olhos. Na direção do outro pote. Deixando escapar bem baixinho um “eu sabia” de triunfo, Alexandre pega o potão vermelho e o exibe com indisfarçável orgulho. jn6h
— E temos esse aqui, ó, de cereja — diz Alexandre, abrindo aquele sorrisão sedutor de quem domina a arte das decisões ditatorialmente perfeitas. Para a surpresa do esforçado atendente, porém, Isentinho permanece indeciso. — Vamos, moleque! Tem mais gente atrás de você. Vai querer ou não o sorvete de cereja? — pergunta, mergulhando ansiosamente a colher na massa mole do lulopetismo. Digo, no sorvete de cereja.
Aí o Isentinho, que até então estava quieto, abre um berreiro falsamente indignado. — Bobão! Ativista judicial! Censor! — grita ele, apontando para o atendente, que sai de fininho dessa história, embora insista em continuar no Supremo. Isentinho, então, se joga no chão. — Me sinto ofendido por ter de escolher entre esses sabores! Quero baunilha! Quero a Terceira Via!
— A Terceira Via já era. E não temos sorvete de baunilha — diz Abi Fenaj, atendente que se apressa em substituir Alexandre. Que agora vemos no fundo da sorveteria, perseguindo uns empresários que cometeram o grave crime de preferirem sorvete de pistache com manga. Que absurdo! Ao ouvir a voz melíflua da atendente, Isentinho se levanta e enxuga o ranho do choro fingido na manga do terninho. — Mas eu quelo sovete de baunilha — diz, fazendo biquinho e falando que nem bebê só porque o cronista quer.
— Como o excelentíssimo Alexandre já lhe informou, temos esse aqui de pistache com manga — começa ela. Que, com uma sinceridade brutal, surpreendente e, para mim, repugnante, completa: — Mas só estou oferecendo porque o TSE me obriga. Isso é sabor de fascista! Você, um isentão limpinho assim, não vai querer. Ninguém gosta de fascista. Nem de genocida. De anticientífico, homofóbico, machista. O que você acha que os colegas vão pensar de você se o virem tomando sorvete de pistache com manga na festa da democracia?
Isentinho ficou pensando, pensando, pensando. E nisso vê surgir e desaparecer a vontade de gritar “Terceira Via” uma última vez. Ao contrário do afobado Alexandre, a atendente/militante percebe na hesitação do menino a oportunidade revolucionária de convencer Isentinho a escolher o sabor da regulamentação da imprensa, da invasão de propriedade, da corrupção, do desenvolvimentismo, da libertinagem, da perseguição aos adversários políticos — tudo com um leve toque de cereja.
— Quer saber?! — pergunta ela sem perguntar e mergulhando a colher no pote de sorvete comunista antes que o menino possa reagir. – Aqui está o seu sorvete. Nós decidimos por você – diz, entregando o cone de waffle sem glúten para o menino mimado. Assim que leva o sorvete à boca, Isentinho sente o gosto amargo da mentira, o azedo da hipocrisia e sobretudo o salgado da sua própria omissão falsamente virtuosa. Mas agora é tarde demais.