Sem colocar tanta ênfase na razão – essa a sua notória diferença em relação aos enciclopedistas –, Rousseau concordava que a moralidade humana fosse essencialmente pública. Em lugar da consciência individual como sede do juízo moral, tanto ele quanto Diderot elevavam a vontade geral ao estatuto de fonte absoluta desse juízo. Nesse sentido, davam prosseguimento às tentativas de Maquiavel e Hobbes de circunscrever a moralidade humana ao domínio imanente da política. Se, para os filósofos absolutistas, o Príncipe e o Leviatã representavam o critério absoluto para a proclamação do bem e do mal, para os iluministas esse papel cabia à vontade geral. Se, para Maquiavel e Hobbes, o pecado mortal era a guerra civil – tida por um adoecimento do corpo político –, para Diderot e Rousseau era a desobediência civil, a sublevação da vontade individual contra a vontade geral. “Se, depois de haver reconhecido publicamente esses dogmas, alguém se comporta como se os não aceitasse”, diz Rousseau, “que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes”. A vontade geral é coercitiva. Seu poder não tem limites.

O coletivismo protofascista rousseauniano também é evidenciado na novela Emílio, ou Da Educação (1762), na qual o personagem-título é instruído por seu tutor a exercer as virtudes sociais não em relação a indivíduos particulares, mas para com a “espécie” e o “conjunto da humanidade”. Escreve Rousseau nessa obra: “Para impedir que a compaixão degenere em fraqueza, é preciso generalizá-la, estendê-la a todo o gênero humano. Deve-se, portanto, e por amor a nós mesmos, ter compaixão para com a nossa espécie mais do que para com o nosso próximo”. Como se nota, não poderia haver inversão mais simétrica da caridade cristã.

Obedecendo à “vontade geral”, e tal qual um Deus encarnado, o Estado iluminista aria a dispor do poder sobre a vida humana, reduzida, portanto, a mera concessão estatal

Segundo a historiadora Gertrude Himmelfarb, a despeito de suas desavenças, Rousseau e os philosophes adotavam um mesmo modus operandi: a tendência a generalizar as virtudes, e a sobrepor o “conjunto da humanidade” ao indivíduo, a “espécie” ao próximo. Para os gurus ideológicos do ministro Barroso, o “bem comum dos homens” era mais do que a simples soma dos bens dos homens individuais. E, sobretudo, como sugere Himmelfarb, não se confundia em absoluto com o bem dos homens comuns. Assim como no nosso iluminista de Vassouras, a característica mais ressaltada nos originais ses era um retumbante e inolvidável elitismo.

No Emílio, por exemplo, não há qualquer menção ao homem comum, pertencente à parcela social que Voltaire costumava chamar de la canaille (“o populacho”). O protagonista era de origem nobre, e sua educação estava a cargo de um preceptor particular. Já o homem pobre não carecia ser educado, pois, segundo Rousseau, sua própria condição miserável induzia-o a uma educação compulsória. Ademais, ao falar sobre educação pública – como no verbete sobre economia da Enciclopédia –, Rousseau não tinha em mente o ensino tradicional da matemática, ciências e literatura, mas a disciplina moral e social que o Estado deveria impor às crianças e aos jovens: “Não se deve abandonar às luzes e preconceitos dos pais a educação de seus filhos, pois ela importa ao Estado mais que aos pais. O Estado permanece, e a família perece” – uma afirmação que Barroso decerto subscreveria.

Também em Voltaire e Diderot o elitismo era visceral. Quando o primeiro dizia que “todo homem sensato e honrado” deveria nutrir horror pelo cristianismo, não pensava nas pessoas comuns. Aos olhos de Voltaire e companheiros, estas não podiam ser sensatas nem honradas, pois que demasiado ignorantes para tanto. Na apresentação da Enciclopédia, obra tida como instrumento para a construção de uma era filosófica e racional, Diderot deixava claro que dela não faria parte a massa das pessoas comuns. “A massa genérica de homens não foi feita para promover, e sequer compreender, essa marcha progressiva do espírito humano”, escreveu em O Sobrinho de Rameau (1805). E, no verbete “Multidão” da Enciclopédia, foi ainda mais explícito: “Desconfie do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; sua voz é a da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito... A multidão é ignorante e confusa... Desconfie de sua moral; ela não é capaz de produzir ações fortes e generosas”.

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Para Diderot, a população comum era “imbecil” (imbécile) em termos de religião. Enquanto, de modo geral, a superstição nacional parecia recuar, esse progresso dificilmente chegaria até “o populacho” (la canaille). O “povo” (le peuple) era demasiado “idiota, bestial, miserável e ocupado” para iluminar a si próprio. “A quantidade de canaille mantém-se sempre mais ou menos estável”. Daí que o enciclopedista acreditasse que a multidão precisaria sempre de uma religião como o cristianismo, supostamente repleta de rituais e fábulas infantis.

Segundo essa perspectiva, as luzes da razão eram restritas a um pequeno grupo, uma “igreja invisível” (como o chamava Diderot) cujos membros detinham uma gnose libertadora. Concordando com o amigo, Voltaire dizia que l’Infâme (ou seja, a Igreja Católica) não fora feita para os “homens respeitáveis”. Destinava-se, ao contrário, à la canaille. “Jamais tivemos a pretensão de levar as luzes a sapateiros e serviçais” – dizia o castelão de Ferney –, “esse é um trabalho para os apóstolos”. De novo, uma afirmação que, do alto de sua extemporânea húbris iluminista, Barroso subscreveria com gosto.

Todas essas características do Iluminismo, e sobretudo o seu cientificismo, bem como a tendência à sacralização do Estado e à criação de uma religião civil (ou política), foram responsáveis por gestar alguns dos maiores morticínios da história contemporânea, a começar pelo Terror jacobino (assumidamente inspirado na ideia rousseuniana de “virtude” pública). Como escreve o filósofo político John Gray: “O problema com os mitos seculares é o de serem frequentemente mais danosos que os antigos. No cristianismo tradicional, o impulso apocalíptico era controlado pelo insight de que os seres humanos eram inerentemente falhos. Nas religiões seculares que surgiram desde então, esse insight foi perdido. O resultado foi uma forma de tirania inédita na história, cujos vastos crimes são cometidos em nome do paraíso na Terra”.

Gray descreve o cientificismo iluminista como motor dos horrores do século 20: “O papel do pensamento humanista em moldar os piores regimes do século ado é facilmente demonstrável, mas frequentemente negligenciado, ou negado, por aqueles que costumam vociferar sobre os crimes da religião. No entanto, os genocídios do século 20 não foram perpetrados por alguma versão tardia da Inquisição espanhola. Foram perpetrados por regimes ateístas a serviço das ideias iluministas de progresso. Stalin e Mao não acreditavam no pecado original. Mesmo Hitler, que desprezava os valores iluministas da igualdade e da liberdade, partilhava da fé iluminista na criação de um mundo novo pela vontade humana. Cada um desses tiranos imaginou que a condição humana pudesse ser transformada pelo uso da ciência”.

As características do Iluminismo, sobretudo o seu cientificismo, bem como a tendência à sacralização do Estado e à criação de uma religião civil (ou política), foram responsáveis por gestar alguns dos maiores morticínios da história contemporânea, a começar pelo Terror jacobino

Mais uma vez, a junção de Hitler e Iluminismo numa mesma sentença pode chocar os semiletrados. Para os estudiosos, contudo, trata-se de uma obviedade. Estudiosos como o próprio Gray, que, em outra obra, também afirma: “Os regimes comunistas foram estabelecidos em busca de um ideal utópico cujas origens restam no coração do Iluminismo. E, embora o fato seja bem menos reconhecido, os nazistas também eram, em alguma medida, filhos do Iluminismo”. Como o historiador Lewis Namier, que escreve em Vanished Supremacies (1958): “Hitler e o Terceiro Reich foram a terrível e incongruente consumação de uma era que, como nenhuma outra, acreditou no progresso e esteve certa da sua aquisição”. Ou como Voegelin, que, em Hitler e os Alemães, mostra como o cientificismo religioso de Ernst Haeckel ajudou a moldar o espírito nacional-socialista.

De acordo com o filósofo alemão, Hitler acreditava piamente no poder salvífico da ciência. Em certa ocasião, quando planejava um grande observatório e planetário na cidade de Linz (Áustria), o líder nazista explicou o projeto numa linguagem tipicamente haeckeliana (e não menos iluminista): “Milhares de turistas farão uma peregrinação ali, aos domingos. Terão o à grandeza do nosso universo. O frontão triangular terá este mote: ‘Os céus proclamam a glória da eternidade’. Será nossa maneira de dar aos homens um espírito religioso, de ensinar-lhes a humildade – mas sem sacerdotes. Para Ptolomeu, a Terra era o centro do mundo. Isso mudou com Copérnico. Hoje sabemos que nosso sistema solar é apenas um sistema solar entre outros muitos. O que poderíamos fazer melhor do que permitir ao maior número possível de pessoas ficar a par dessas maravilhas?... Ponde um pequeno telescópio numa vila e destruireis um mundo de superstições” (citado por Alan Bullock em Hitler: A Study in Tyranny).

Barroso também não crê no pecado original. Mas acredita que a condição humana pode ser transformada pelo uso da “ciência” – essa entidade mística da qual se acha representante. Adepto retardatário das “ideias iluministas de progresso”, Barroso também acha que a “ciência” pode destruir um mundo de superstições, e que a voz de la canaille – ou, como ele prefere, dos “guetos pré-iluministas” (e a ressonância da palavra gueto é aí demasiado emblemática, remetendo também aos “grupos humanos tísicos” que Marx e Engels queriam aniquilar com o seu “progresso”) – é a voz da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito. E, por fim, imagina, como Diderot, pertencer a uma “igreja invisível”, apartada da ralé. Daí que, movido por essa fé secular nas deusas “razão” e “ciência”, convicto de encarnar a “vontade geral” universal, e permanentemente excitado por uma autoimagem distorcida e grandiloquente, o ministro iluminista não hesite em ignorar o texto constitucional ou atropelar a democracia representativa – “com grande parcimônia e autocontenção”, é claro – para “dar o salto histórico necessário”, uma espécie de versão barrosiana do “Grande Salto Para a Frente” de Mao Tsé-tung. E, assim, empurrando-nos para onde acredita ser a “frente”, e a exemplo de todos os progressistas que o antecederam, é bem mais provável que o ministro que tinha ideias nos leve para baixo, rumo ao tártaro da tirania.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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